terça-feira, 23 de novembro de 2010

51º Café Filosófico - Filosofia na Cadeia

O que os reclusos da Cadeia de Paços de Ferreira nos têm a dizer sobre a Liberdade.




Esta sessão no Estabelecimento Prisional de Paços de Ferreira começou verdadeiramente há cerca de dois anos atrás numa sessão da Oficina Jovens Filósofos onde discutíamos o conceito de liberdade. No fim da sessão a Mariana, de 13 anos, lançou o desafio de “convidar uma pessoa que estivesse presa” para discutir este tema.

A Mariana claramente percebeu o interesse em aprofundar este tema com alguém para quem liberdade não era apenas uma palavra mais ou menos vaga e bonita para se discutir numa aula de filosofia, mas sim uma ideia com conteúdo real, quase palpável e na qual se pensa todas as horas do dia.
Desde esse dia essa vontade de filosofar com presos em torno do conceito de liberdade nunca mais me abandonou e, como tal, não pensei duas vezes em dizer que sim quando a oportunidade surgiu.

A convite da Bárbara, psicóloga que dinamiza mensalmente na Cadeia de Paços de Ferreira um programa para os reclusos chamado “Café Com…” tive a oportunidade de realizar com cerca de vinte reclusos mais uma sessão de Café Filosófico, o 51º.

"Somos livres?"
foi a questão que não pude deixar de colocar aos cerca de vinte pensadores que me rodeavam.
Apesar de já saberem de antemão o tema do Café Filosófico (anunciado em cartazes na prisão), para alguns esta pergunta foi um pequeno choque. Em primeiro lugar por que estavam certamente à espera de ir assistir a uma aula estilo palestra dada por um filósofo sobre a liberdade e quando perceberam que os filósofos de serviço iriam ser eles alguns não se sentiram muito bem nessa pele de participantes activos da sessão. As primeiras respostas surgiram em catadupa e com pouco pensamento acoplado: “Claro que não. Então não se vê? Estamos aqui presos.”

Pedi-lhes que tivessem calma e que pensassem dois minutos em silêncio sobre a pergunta e sobre o alcance da palavra “Somos”, que não se referia apenas aos presentes naquela sala mas à humanidade em geral. Conseguir fazer essa ligação com o resto dos seres humanos “lá fora” teve o condão de eliminar as diferenças que naturalmente existiam entre mim (livre) e eles (presos). De repente ou éramos todos livres ou éramos todos não-livres, todos nós reclusos e não reclusos, eu, os vinte filósofos à minha volta e todos os seres humanos do planeta. E isto foi conseguido com um simples convite a saírem momentaneamente das suas existências particulares e das suas vivências concretas de seres humanos enclausurados e pensassem de um ponto de vista universal, o único ponto de vista comum a todos os homens. Este meu pedido, que não foi mais que um pedido para pensarem filosoficamente, serviu para que os seus rostos desconfiados se abrissem em sinal de aprovação perante o desafio que tinham pela frente e passassem os dois minutos seguintes em profundo silêncio aprofundando e contemplando para eles próprios o problema que tinham pela frente.

Esses momentos de silêncio que promovo em cada sessão antes de dar início ao debate (uma “almofada de reflexão” como lhes costumo chamar) são sempre especiais e intensos, mas este foi particularmente especial e intenso uma vez que, como foi dito atrás, o que lhes era pedido era que se libertassem dos seus “Eu´s” concretos de indivíduos reclusos na Cadeia de Paços de Ferreira e durante pelo menos dois minutos pensassem do ponto de vista da humanidade inteira e esse pedido, como se percebe, comportava já em si a própria essência do conceito que nos propunhamos investigar: a liberdade. Era-lhes pedido que se libertassem de si mesmos para pensarem sobre a liberdade de todos.
"Os seres humanos são livres?" É este o poder da filosofia.



Ao contrário do que costumo fazer não vou reproduzir aqui as ideias que foram debatidas nas duas horas que durou o Café Filosófico. Não porque sejam ideias impróprias ou demasiado radicais para uma sessão de filosofia, antes pelo contrário. São tão impróprias e radicais quanto todas as outras que costumamos, filósofos não reclusos, debater nos nossos Cafés Filosóficos “cá fora”. Nesse sentido não houve a mais pequena diferença entre estas e outras sessões em que falámos da liberdade ou de outros conceitos quaisquer. A única diferença é que nesta sessão os conceitos que normalmente balizam as discussões sobre a liberdade como "doutrinamento e condicionamento social”, “liberdade de pensamento e liberdade de escolha”, “liberdade de movimento e liberdade de espírito”, etc. vinham associados a expressões como “Não consigo deixar de pensar na minha mulher, no calor da minha casa, nos abraços que vou dar aos meus filhos no Natal, logo não controlo os meus pensamentos.” Ou “não tenho conseguido dormir de ansiedade por não saber se vou sair em precária, logo não sou livre para pensar o que quero”.
Nós, filósofos “cá de fora”, não estamos habituados a este tipo de raciocínios e induções e, no que a mim me toca, prefiro deixá-las com quem está “lá dentro” e viveu este Café Filosófico.

A verdade é que aqui no Estabelecimento Prisional de Paços de Ferreira pensa-se sobre a liberdade essencialmente da mesma forma que se pensa sobre a liberdade no Clube Literário do Porto ou na Casa da Cultura de Gaia (locais onde normalmente conduzo Cafés Filosófico) a diferença é que esses conceitos aqui na cadeia são vividos de maneira diferente por quem os pensa da mesma maneira.
Esta descoberta serviu para desmistificar um pouco a ideia da Mariana de que um preso teria algo mais a ensinar-nos sobre a liberdade que as outras pessoas. Saí de Paços de Ferreira com a convicção de que um preso terá tanto a ensinar-nos sobre a liberdade como qualquer outra pessoa que se digne a pensar filosoficamente sobre a liberdade connosco, o que não é de admirar uma vez que um preso é como qualquer outra pessoa.

Nesse sentido com este Café Filosófico aprendi muito mais que uma lição de liberdade. Este Café Filosófico foi para mim uma lição de igualdade.


Deixo-vos com as respostas de alguns dos participantes à pergunta que serviu de síntese à sessão:
O que é a liberdade?

É um direito dos seres humanos. É ter felicidade e ser livre para pensar. (Manuel)

Ser livre é ter capacidade para pensar. (Ricardo)

Liberdade é estar com quem amamos. (Vítor)

Somos livres quando a consciência não nos acusa ou diz que agimos correctamente. (Pedro)

Ser livre é ter o mínimo de restrições possível. (Luís)

É ter a consciência de que não fizemos nada de errado. (Vilarinho)

É aquilo que cada um pensa que é. Sentimo-nos livres mas não somos realmente livres. (Adelino)

É ver o meu filho. (João)

É um bem adquirido à nascença, mas que durante a vida se vai restringindo. (Paulo)

A liberdade só pode ser vivida. (Duarte)

Ter liberdade é ter saúde e algum dinheiro. (Serafim)

O último a falar foi o João. Um senhor grisalho com uns 60 anos. O João quase não falou durante a sessão e andava de um lado para o outro à volta da sala ouvindo os outros companheiros e concordando ou discordando com a cabeça mas calado, sem dizer nada. Deixou-se propositadamente ficar para o fim e quando falou os outros calaram-se como que em respeito. Soube numa conversa cruzada depois da sessão que o João está a cumprir uma pena de 25 anos de prisão.

Liberdade é sair deste buraco. Foi o que fizemos nestas duas horas. (João)

7 comentários:

Maria José, CLP disse...

O Mestre Gandhi certa vez disse: "A prisão não são as grades, e a liberdade não é a rua; existem homens presos na rua e livres na prisão. É uma questão de consciência.". Parabéns Tomás: conseguiste que os homens que te ouviram se sentissem "livres na cadeia" durante aquelas duas horas!...

Maria José, CLP

Tomás Magalhães Carneiro disse...

Obrigado Maria José, mas eles não "me ouviram". Ouviram-se a eles, o que é bem diferente.

beijinho,

Tomás

F disse...

Pois é! O comentário do João "cativou-te" e agora há a responsabilidade que vem sempre presa à Liberdade!
Parabéns!

susana disse...

Parabéns, Tomás! Deve ter sido fantástico. Gostaria de ter sido uma mosca na assistência :) beijo

Unknown disse...

Uma experiência interessante e, com certeza, muito enriquecedora. Estas experiências mostram-nos que mais importante do que uma razão iluminada é uma razão emocionada,quero dizer, uma razão que sente.
A maioria das respostas dadas refere-se à liberdade como liberdade interna e não à ausência (ou presença) de constrangimentos físicos. De facto essa (a liberdade interna) é a mais difícil de alcançar.
Anabela

Tomás Magalhães Carneiro disse...

Obrigado pelos comentários, amigos.
Foi de facto uma experiência muito enriquecedora, tanto para mim como, estou certo disso, para todos os que participaram neste Café Filosófico.
A experiência é para repetir pois foi-me comunicada a vontade por parte da Cadeia de Paços de Ferreira em continuar com estas sessões.

Um dos meus objectivos no âmbito da Filosofia Prática é, exactamente, contaminar o maior número possível de pessoas para a prática da filosofia em geral e do diálogo filosófico em particular. Acho que consegui um pouco isso lána cadeia.

Talvez daqui a uns meses tenhamos lá instalado um núcleo de Filosofia Prática.

abraços,

Tomás

susana disse...

Se precisares de uma parceira para visitar as cadeias femininas, diz :)(depois de umas valentes horas de formação contigo, claro.) Deve ser libertador (para mim, sobretudo). beijo, susana