Cafés Filosóficos e Conversas de Café
Não há dois Cafés Filosóficos iguais. E é essa mesma variedade de sessões, de estilos de moderação, de problemáticas e de formas de participação que torna difícil a definição do próprio conceito de Café Filosófico. Se há algo que um Café Filosófico não é, é Conversa de Café. Numa Conversa de Café cada um diz o que quer, na altura que quer e normalmente diz aquilo que considera ser importante e inadiável. Aí os discursos atropelam-se, as ideias misturam-se, a conversa começa num ponto e rapidamente salta para outro, e outro e ainda outro e todos falam, alguns berram e, normalmente, não há uma real compreensão do que é dito. Ou, a existir essa compreensão ela é muito superficial ou muito tácita, o que, de ambas as formas é uma compreensão pouco filosófica que se quer profunda e explícita.
Outra diferença flagrante entre um Café Filosófico e uma Conversa de Café está em que normalmente saímos de uma Conversa de Café com as certezas com que iniciámos a conversa ainda mais firmes uma vez que tudo o que fizemos nessa conversa foi afirmar e reafirmar aquilo em que já acreditávamos. Já num Café Filosófico é normal sairmos com as nossas certezas feitas em cacos pois o que se faz num Café Filosófico é ouvir críticas às nossas ideias de uma forma tranquila e racional. Uma vez eliminada a nossa ânsia em nos afirmarmos e em nos defendermos estamos mais aptos a ouvir a razão que muitas vezes está do lado dos outros e não do nosso lado.
É por estes motivos que apenas confunde um Café Filosófico com uma Conversa de Café quem nunca participou num Café Filosófico, uma vez que o que se faz lá é exactamente o contrário do que se faz numa Conversa de Café.
Julgo que o Café Filosófico deste domingo no Clube Literário do Porto foi um bom exemplo do contraste entre estas duas formas de conversar (a filosófica e a meramente social). Do meu ponto de vista, enquanto moderador, foi uma sessão esgotante pois tive de lidar com os obstáculos que naturalmente surgem numa sessão filosófica deste tipo, ainda por cima contando com uma grande percentagem de participantes jovens (estudantes do ensino secundário e universitário que participavam num Encontro Nacional de Estudantes de Física) ansiosos por se exprimirem, criticarem, lançarem ideias atrás de ideias. Ainda do meu ponto de vista foi uma das sessões mais gratificantes que tive até hoje, exactamente pelos mesmos motivos que acabei de enunciar.
Quanto ao ponto de vista dos participantes, obviamente que cada um terá o seu e que este será único e irrepetível. Felizmente continuamos a contar com a disponibilidade da Chantal Guilhonato para nos revelar o seu ponto de vista de mais um destes nossos diálogo filosóficos. Em baixo seguem as suas notas. A foto desta sessão é do Paulo Pereira. A todos muito obrigado.
Notas de Chantal Guilhonato do 93º CAFÉ FILOSÓFICO no Clube Literário do Porto
A placa de matrícula à minha frente não tinha letras nem algarismos. Apenas ponteiros. Os imaginários tictatiavam-me que chegaria a tempo. Os outros ignorei-os.
Fiz a vontade ao rádio que me pedia descanso e entrei no CLP.
A sala estava cheia de pessoas e senti o cheiro fresco a ideias. À medida que pedia licença para chegar à única cadeira por colonizar, tornou-se claro que afinal o ar já transpirava reflexão.
Parou de imediato o meu relógio de Alice no país das maravilhas.
Deixei-me invadir pela perda de um tempo partilhado apenas por outros. Agora tinha de pedir licença à mente para me deixar correr atrás de argumentos que estavam em maratona há meia hora.
Descobri o tema da sessão Realidade e Aparência e que o exercício proposto ao público presente era o de “problematizarem” esses conceitos, ou seja, que fossem propostas perguntas que nos ajudassem a penetrar mais fundo na nossa compreensão dos conceitos de “Realidade e Aparência”. Olhei para as duas perguntas de silhueta preta, desenhadas pelo marcador do Tomás.
- Até que ponto podemos distinguir a aparência da realidade (Inês)?
- A aparência condiciona a percepção da realidade (António)?
Enquanto se procuravam os conceitos essenciais de cada uma delas, pedi-me um tempo extra e entreguei-me à atmosfera da sala. Tecidos caracteriais vestiam ideias ora vivas e impacientes ora ponderadas e reflectidas.
«Quantidade» foi o conceito mais votado para classificar a primeira pergunta e «Possibilidade» para a segunda. Pelo meio ficaram «Relação», «Veracidade» e «Transformação».
Antes de nascer uma terceira pergunta, o Tomás propôs-nos que distinguíssemos quatro tipos de relações possíveis. Estes diferentes conceitos poderiam ajudar-nos na tarefa de classificar/diferenciar as perguntas que iam surgindo:
• Necessidade
• Possibilidade;
• Probabilidade
• Impossibilidade;
Uma terceira pergunta surgiu no quadro.
- Podemos chegar à realidade (Rui)?
Foram propostos quatro conceitos para classificar esta pergunta:
• Qualitativo (Maria Manuel);
• Capacidade (Carla);
• Possibilidade (Inês);
• Finalidade (Alice).
Eu continuava a pedir-me tempo para observar o que ouvia.
Depois de debatidos os dois conceitos escolhidos, neste caso «Possibilidade» (associado a uma limitação absoluta) e «Capacidade» (associado a uma limitação humana), foi votado o conceito de «Possibilidade».
Dado que a segunda e terceira perguntas tinham o mesmo conceito associado (Possibilidade), procurou-se a diferença entre ambas:
O António arriscou uma hipótese: na pergunta 2 estaríamos perante uma «possibilidade subjectiva» e na 3 de uma «possibilidade objectiva».
Já para o Ricardo: na pergunta 2 estaríamos perante uma «possibilidade circunstancial» e na 3 de uma «possibilidade universal». Esta sugestão foi a escolhida pelo grupo.
[Todo este processo de clarificar e classificar as três perguntas sugeridas pelos participantes não é mais que procurar pôr em prática uma metodologia de investigação filosófica proposta por Descartes: avançar através de ideias claras e distintas.]
Das três perguntas o grupo seleccionou a última: Podemos chegar à realidade?
Partimos então em busca de algumas respostas:
- Sim, porque a percepção é um sub-conjunto da realidade (Tiago);
- Sim, porque a realidade existe (Carla).
Aqui a Maria Manuel considerou não existir argumento pois a existência da realidade não nos permite concluir que a podemos atingir.
Em contraposição, o Rui considerou irrelevante tentarmos perceber se existia ou não um argumento. O grupo discutiu então a pertinência ou não da argumentação num diálogo filosófico.
No final alguns dos participantes avançaram com uma definição para realidade e/ou aparência:
- Realidade é o conjunto das percepções;
- Realidade é um conceito inventado para explicar o que não conseguimos entender;
- Realidade é um universo material;
- Aparência é a nossa realidade pessoal;
- Realidade é tudo o que existe;
- Realidade é tudo o que sinto;
- Aparência é a nossa percepção da realidade;
- Realidade é a verdade da aparência.
Concedi o que me fui pedindo: tempo às ideias para observar.
Na realidade não sou a Alice mas vou fazer de conta. A placa de matrícula não tinha ponteiros, apenas letras e algarismos.
Eram quase oito e meia da noite e já não tínhamos mais tempo para continuar o Café Filosófico (começou às cinco e meia). No entanto a sessão continuou para mim e para mais alguns participantes pelo jantar adentro e até às três da manhã debatendo estas e outras questões que entretanto foram surgindo na companhia de umas francesinhas e uns finos. Para outros que não nos acompanharam no nosso pequeno “symposium” sei que a discussão do final da tarde continuou a sentir-se por algumas horas mais, como o som de um sino que continua a ouvir-se muito depois do badalo ter batido no ferro. É isso que atesta esta mensagem do António que recebi na manhã seguinte e que aqui reproduzo, assim como a minha resposta.
- Acho curioso que nos negue a definição dos conceitos, de que tanto precisamos para edificar a casa que é o dia, em bases íntimamente sólidas. Primeiro o "geral" e depois... mais tarde, o "singular". (António)
- Olá António,
esta é apenas uma metodologia de debate filosófico que gosto de experimentar, nada mais do que isso. Não tem nenhum carácter metodológico especial além de ser um contributo para nos pôr a pensar.
Não há dúvida que começar por definir os termos da discussão é a forma canónica de se fazer filosofia e teria filósofos como Spinoza e Descartes a dar-lhe razão. Por outro lado Hegel dir-nos-ia que é a Dialéctica dentro do próprio conceito a força motriz da filosofia, e o que fazemos neste tipo de sessões é, exactamente, explorar essa dinâmica existente dentro dos conceitos.
Mas a minha motivação (enquanto moderador de debates filosófico) para favorecer esta investigação "in media rés" (digamos assim) é que a discussão não se afunde numa procura de definições, uma constante e interminável busca pelos "O que é X?". Desta forma não trabalhamos apenas definições mas outras competências filosóficas como a "Problematização" (levantar perguntas a conceitos (como na sessão de ontem), que com a dinâmica do grupo nos permite ver problemas onde antes não viamos, a "Conceptualização" (análise e sintese conceptual e a "Argumentação".
O facto de deixarmos a Definição para o fim também faz com que essa mesma definição esteja mais informada. Mas como lhe disse no início, é apenas um recurso metodológico sem qualquer intenção para além disso. (Tomás)
2 comentários:
Olá Tomás!
Daqui é a Inês, que participou nesse café filosófico (era a menina que estava sempre a querer falar por cima de toda a gente...)
Estive a percorrer o blog, e descobri que afinal já o tinha conhecido antes, uma vez que estive presente numa sessão da universidade junior há sensivelmente 3 anos atrás, onde discutimos a existência de unicórnios toda a manhã. Nessa publicação as minhas participações estão referenciadas como "Mia" (que é a minha alcunha). Achei engraçado!
Espero voltar a participar, pois é uma maravilhosa experiência.
Olá Inês,
só agora li este teu comentário.
Realmente reconheci-te na sessão de Café Filosófico mas não sabia de onde. Já me lembro de ti agora que referiste a tua alcunha, "Mia", da Universidade Júnior.
Vai vendo as próximas sessões de Café Filosófico aqui: http://filosofiacritica.wordpress.com/0-qual-o-proximo-evento/
E visita a página do Clube Filosófico do Porto no Facebook. Dessa forma ficas a par das nossas actividades.
Gostei muito da tua "vivacidade filosófica". Aos poucos vais aprender a controlá-la mais e a dirigi-la melhor. Aí ninbgiém te pára ;)
um beijinho,
Tomás
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