domingo, 22 de fevereiro de 2009

5º Café Filosófico - Breyner 85


Na sua obra "O Banquete" Platão colocou o número ideal de convivas num encontro de Filosofia entre três e nove, "mais do que as Musas e menos do que as Graças". Julgo que a intensidade deste Café Filosófico, o primeiro no Breyner 85, veio dar razão a Platão.

Eramos poucos participantes mas, também como poucos, entregamo-nos de corpo e alma a discussões acerca do corpo e da alma, e não só.
Neste não só inclui-se uma interessante discussão, que iniciou o Café Filosófico, acerca de diferentes significados do conceito de pertença.

"Os filhos pertencem aos seus pais?", foi a pergunta do Pedro, arquitecto, que espoletou a discussão. Ao tentar lidar com esta pergunta arriscaram-se algumas definições de "pertencer" claramente insatisfatórias como "Pertence-me apenas aquilo que posso usufruir totalmente e da forma que eu quiser". Esta definição mostrou-se insuficiente pois dizemos de uma série de objectos que nos pertencem sem que, no entanto, possamos "usufruir deles totalmente e da forma que quisermos". O caso de uma arma de fogo vem-nos rapidamente à ideia. É nossa, no sentido em que nos pertence, sem que, no entanto, possamos matar alguém com ela. Claro que num certo sentido até podemos matar alguém com ela, mas nesse sentido também podemos usufruir dos nossos filhos "totalmente e da forma que quisermos" e, ainda nesse sentido, eles pertencer-nos-iam. Ora isto é exactamente o contrário do que a primeira definição pretendia, logo, algo parece estar mal com a definição.

Depois andámos em volta de uma série de nuances relativamente a diferentes tipos de pertencer: uma imposição é algo que nos pertence contra a nossa vontade; acarinhar é uma forma de nos relacionarmos com algo que sentimos ser nosso; controlamos o que julgamos que é nosso; ajudamos o que é nosso, etc.

O Ricardo, artista plástico, levou a discussão para outro campo. O seu comentário que perseguimos foi: "Eu não me pertenço." Instado a transformar este seu comentário num argumento que nos convencesse usou de uma imagem que acabou por ser útil para o resto da discussão: "Eu não me pertenço, da mesma forma que a electricidade não pertence ao cabo."

Fomos atrás desta analogia e do que ela sugeria. Quisemos saber se era uma boa analogia, ou seja, se passava realmente a ideia que pretendia. A de que o Eu não pertence ao corpo e é, mesmo, algo distinto do seu mero condutor, ou seja, do corpo.

Uma das grandes mais valias destes Cafés Filosóficos é, não só, a disparidade de pontos de vista acerca de qualquer assunto que se discuta, mas também o confronto entre formas de raciocinar e argumentar muito distintas. Isso notou-se quando o Tiago, engenheiro eletrotécnico e filósofo por vocação, julgou ter encontrado algo de iluminador na imagem do Ricardo e a tentou dissecar através de um desenho - que fez no quadro magnético que costumamos usar nestas sessões - em que procurava explicar como a electricidade se manifestava e, percebendo isso, tentar compreender de que forma é que esta analogia podia explicar algo acerca dos nossos processos mentais. Ou seja procurar perceber em que é que a electricidade e o cabo condutor se assemelham, respectivamente, ao corpo e à mente.
A primeira ideia a sair desta tentativa de racionalizar a imagem fornecida é a de que é impossível haver electricidade sem um condutor (cabo, àgua, ar, etc.), assim, e ainda dentro dos parâmetros da analogia, não seria possível uma mente sem um corpo condutor. Ou seja, esta primeira ideia explicativa aceitava e dava um maior sentido à imagem que o Ricardo nos passou.

O que nos afastou da imagem do cabo e da electricidade foi a compreensão de que há algo característicamente associado à ideia de mente e que não está presente na noção de electricidade, ou seja a noção de Eu. Algo, que não é o corpo e que confere unidade aos impulsos electricos (sinapses cerebrais, etc.) que fornecem a nossa mente. Sem essa unidade "auto-reguladora" não podemos falar de mente e muito menos podemos falar de Eu. A imagem da electricidade e do cabo serviu para nos trazer até aqui, mas neste ponto teve de ser abandonada.

Avançamos um pouco mais explorando algumas consequências da ligação (ou não) da mente ao corpo e caímos na velha discussão que opõe deterministas e indeterministas acerca da mente.
Em debates de Filosofia da Mente, um dilema comummente aceite acerca deste problema é o apresentado por Tim Crane em "Elements of Mind". Aqui Crane argumenta que, ou o mundo é causalmente fechado (ou seja tudo o que acontece no mundo é físico e regido por leis físicas - o chamado ideal da completude da física), e nesse caso vivemos num mundo determinista* em que mesmo os nossos fenómenos mentais estão determinados por eventos físicos anteriores (ou seja, não somos livres), ou então se queremos continuar a acreditar que somos livres e que a mente tem poderes causais sobre o mundo, temos de negar a completude da física. **/***

As opções aqui são as seguintes:
1) Monismo - aceitamos que a mente é algo que pertence ao mundo físico (e então temos de rever o nosso conceito comum de mente);

2) Dualismo - defendemos que a mente é algo distinto do físico, mas que não tem poderes causais sobre o mundo físico (esta ideia de que a mente é superveniente em relação ao corpo tem claras consequências importantes sobre outros conceitos como o de livre arbítrio);

3) Emergentismo - negamos que o mundo físico é causalmente fechado e abrimos assim espaço para uma mente que ao mesmo tempo faz parte do mundo físico e é livre.

Foi esta terceira via a seguida pelo nosso engenheiro electrotécnico para quem a própria matéria ainda tem muito de misterioso e que não é seguro que seja de todo determinista. Neste sentido a ciência física, poderá ser ela própria indeterminista e isso abre espaço para uma concepção da mente que ao mesmo tempo pertence ao mundo explicado pela física, mas que é também indeterminista e, possivelmente, livre.

Independentemente da verdade destas conclusões é fascinante assistir à construção e destruição de ideias e argumentos filosóficos mesmo à nossa frente. Num bom Café Filosófico, como foi este no Breyner 85, assiste-se a todo o processo de pensamento que foi percorrido por outros pensadores antes de nós (Descartes, David Hume, David Chalmers , ou Daniel Dennett ) e que podemos encontrar em diversas obras de filosofia (Meditações Metafísicas, Investigação sobre o Entendimento Humano, The Conscious Mind ou Elbow Room - para citar apenas uma obra de cada um destes filósofos).
A diferença é que num Café Filosófico temos o privilégio de vermos surgir essas ideias à nossa frente, como se da primeira vez se tratasse.


*O problema aqui é que ao admitirmos na nossa visão do mundo algo como uma mente (no sentido comum de mente enquanto algo com certos poderes causais no mundo físico, como quando penso que me vou levantar e sair da sala e efectivamente levanto-me e saiu da sala) estamos a introduzir uma variável estranha ao sistema físico que se quer completo e autónomo.



** Uma pequena contribuição minha para este assunto aqui


*** Uma pequena contribuição do Miguel amen para este assunto aqui


Estes Cafés Filosóficos no Clube Breyner 85 realizar-se-ão todas as terceiras 5as feiras de cada mês às 21h30.
- foto gentilmente cedida por José Rui M. Correia (CLP 25 de Janeiro de 2009)