terça-feira, 5 de março de 2013

144º CAFÉ FILOSÓFICO - O FUNDAMENTO DO BEM E DO MAL



Um Café Filosófico é um espaço de reflexão em conjunto, uma oportunidade para ouvir os outros e, dessa forma, conhecermos outras perspectivas sobre um problema. Um Café Filosófico é também uma oportunidade rara de deixar que os outros mudem a forma como pensamos.
Normalmente estamos tão seguros das nossas ideias, valores e crenças que nos achamos na obrigação (moral ou pedagógica) de as transmitir aos outros e de os convencer de que temos razão. Muitas vezes à custa apenas da repetição exaustiva dessas mesmas ideias, valores ou crenças sem que nenhum outro argumento ou justificação seja avançada, como que acreditando que a mera exposição prolongada servirá para converter os outros à nossa verdade.

Julgo que o texto da Chantal que vos deixo em baixo é a expressão de algum desapontamento face a essa atitude tão comum nos Cafés Filosóficos (comum porque "demasiado humana") de se querer ouvir mais que ouvir os outros. 
Um dos objectivos destes Cafés Filosóficos é, exactamente, cultivar uma certa Pedagogia do Diálogo numa cultura onde prevalece o Monólogo.




«É belo escrever porque assim se juntam duas alegrias: falar sozinho e falar a uma multidão» (Cesare Pavese). Este pensamento levou-me a um mundo imaginário onde todas as pessoas nasciam sem língua. Bocas grandes com lábios finos e destreinados.
Nesse mundo imaginário, os antigos desenhavam aos mais novos, com letras esculpidas, um mundo desaparecido no qual as pessoas diziam tudo o que lhes passava pela cabeça, a toda a hora.
O relato parecia realmente absurdo e gerara uma série de pesadelos. Durante a noite, as bocas grandes abriam-se para deixar escorrer uma língua longa e rugosa. Sobressalto seguido de alívio ao descobrir que, afinal, a boca estava a salvo, sem qualquer vestígio do nauseabundo músculo indesejado.
Eu não nasci no mundo dos sem línguas e penso por vezes no (des)uso que dou à minha. Quando falo, onde reside a alegria? Na partilha de pensamentos com os outros ou na vaidade de me ouvir? Se a minha língua se visse ao espelho, o que acharia? Francamente nunca a confrontei talvez por temer que ela me cale para sempre.
- Vou engolir-te.
Durante o último Café Filosófico imaginei as línguas que se tentavam empurrar em busca de espaço.
- Vou engolir-te.
Por entre os parcos silêncios, o rebuliço de línguas. Activas, vivas, impacientes, altivas, achadas, perdidas, rendidas...
- Vou engolir-te
Qual é afinal o fundamento do bem e do mal?
Mais línguas. Activas, vivas, impacientes, altivas, achadas, perdidas, rendidas...
As mais sacras dirão que se trata de um chamamento interior, um voto de abnegação em prol dos outros que estão aí para ouvir. Falar até que nos doa. Falar até que vos doa.
- Vou engolir-te...
Alojo-me então num canto da minha garganta seca. Em redor, elas continuam activas, vivas, impacientes, altivas, achadas, perdidas, rendidas...
Num derradeiro esforço, tento engoli-la. Tornar-me uma das sem línguas e partilhar o reino do pensamento pacientemente esculpido.

Chantal 

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